Por Raquel Alves, sócia da Kausa Advogados
No passado dia 28 de novembro de 2023, o Tribunal de Justiça da União Europeia decidiu[1] um litígio, em sede de reenvio prejudicial, colocado no Tribunal do Trabalho de Liège, Bélgica, de uma trabalhadora de um Município (chefe de serviço, com funções principalmente em backoffice), que viu negada autorização para ‘usar o véu’ no seu local de trabalho.
O Município fundamentou a decisão na obrigação de «neutralidade absoluta» no local de trabalho, entendida no sentido da proibição de uso de qualquer sinal visível que possa revelar as convicções, nomeadamente, religiosas ou filosóficas, quer estejam ou não em contacto com o público, neutralidade que viria a fixar em regulamento.
Em sede judicial, a trabalhadora invocou a violação da sua liberdade religiosa, tendo o Tribunal de Liège dado razão à trabalhadora, por considerar existir uma diferença de tratamento baseada diretamente na religião da trabalhadora relativamente ao restante pessoal, uma vez que outros sinais de convicções, nomeadamente, religiosas, usados discretamente, foram tolerados pelo Município, permitindo que a mesma usasse o véu enquanto estivesse a trabalhar em back office.
Este Tribunal, porém, entendeu chamar o Tribunal da Justiça da União Europeia a pronunciar-se sobre a conformidade do Regulamento do Município que impõe tal neutralidade com a Diretiva 2000/78, do Conselho, de 27 de novembro de 2000, que estabelece um quadro geral de igualdade de tratamento no emprego e na atividade profissional, tendo este Tribunal respondido à seguinte questão:
«Pode o artigo 2.o, n.o 2, alíneas a) e b) da Diretiva [2000/78], ser interpretado no sentido de que autoriza uma Administração Pública a organizar um ambiente administrativo totalmente neutro e, por conseguinte, a proibir o uso de sinais [suscetíveis de revelar convicções religiosas] a todos os membros do pessoal, quer estejam ou não em contacto direto com o público».
Considerou o Tribunal da Justiça que deve ser reconhecida a cada Estado‑Membro, incluindo, se for caso disso, às suas entidades infraestatais, uma margem de apreciação na conceção da neutralidade do serviço público que pretende promover no local de trabalho.
Mais entendeu que uma política de «neutralidade absoluta», com vista a instaurar no seu seio um ambiente administrativo totalmente neutro, pode ser considerada objetivamente justificada por um objetivo legítimo, permitindo ter em conta o contexto que lhes é próprio, relativamente à diversidade das suas abordagens quanto à importância que pretendem atribuir internamente à religião ou às convicções filosóficas no setor público, desde que esta regra seja adequada, necessária e proporcionada à luz desse contexto e atendendo aos diferentes direitos e interesses em presença.
Mas, alerta o Tribunal, será importante verificar se o Município prossegue esse objetivo de forma verdadeiramente coerente e sistemática em relação a todos os trabalhadores e não apenas em relação a alguns deles ou em relação a alguma religião ou filosofia.
Em nossa opinião, esta tarefa não é fácil, sobretudo quando os ‘sinais religiosos visíveis’ são eles mesmo mais ou menos discretos consoante as religiões em causa e pode ser efetivamente violento (física e psicologicamente) obrigar alguém a despojar-se de determinados sinais, como é o caso do véu.
Assim, uma obrigação de neutralidade absoluta pode, efetivamente, de forma indireta, afastar dos lugares da Administração Pública quem tenha mais dificuldade em despojar-se dos seus sinais religiosos mais visíveis.
No caso das mulheres muçulmanas, ainda muito subjugadas ao elemento masculino, podem as mesmas ser impedidas pelo seu núcleo familiar de se candidatar a determinados lugares por causa desta obrigação de neutralidade, diminuindo (ainda mais), a sua possibilidade de autonomia e (eventual) libertação (se esse for o seu íntimo desejo).
No nosso país, ao contrário do que sucede no ordenamento jurídico belga, não se encontra consagrado na nossa Constituição o princípio da neutralidade, embora sejamos efetivamente um Estado laico. Prevê, ainda, a nossa Constituição a proibição de discriminação com fundamento na religião, quer em termos gerais (artigo 13º), que no que especificamente respeita aos trabalhadores (artigo 59º, nº 1) e a liberdade de culto e religião (artigo 41º).
Como conjugar, então, todos estes valores, nos serviços da Administração Pública?
É legítimo considerar que qualquer sinal visível de que um trabalhador professa uma determinada religião é suficiente para colocar em causa a laicidade ou a neutralidade do serviço onde desempenha funções? Ou, pelo contrário, o uso de tais sinais passa a mensagem de uma Administração Pública inclusiva, representativa de todos os cidadãos, independentemente da religião que professem?
Tendemos a pender para esta última hipótese, porquanto uma Administração Pública que seja a primeira a dar o exemplo de inclusão e pluralismo tem maior potencial para alcançar uma verdadeira neutralidade.
[1] CURIA – Documents (europa.eu)