Por Mafalda Fernandes, Sócia da Kausa Advogados
É já no próximo dia 4 de março (sem prejuízo das alterações legislativas cujo início de vigência especificamente se reportou a 1 de janeiro de 2024) que entra em vigor o Decreto-Lei nº 10/2024, de 8 de janeiro, diploma que veio introduzir significativas modificações ao Regime Jurídico da Urbanização e da Edificação (abreviadamente, RJUE), falando-se a este propósito no Simplex Urbanístico.
Não nos propomos discutir, nesta sede, a utilidade ou adequação das alterações amplamente produzidas neste Regime Jurídico, mas antes debruçarmo-nos sobre um concreto aspeto concernente ao princípio da tutela jurisdicional efetiva (aqui, concretamente, em matéria urbanística) e que mereceu a nossa especial atenção.
Com efeito, num exercício interpretativo, procurando fazer a devida articulação entre a norma revogatória e a norma de aplicação no tempo (cf. artigos 23º e 24º) do mencionado diploma, concluímos, salvo melhor entendimento, que a revogação do artigo 112º do RJUE (intimação judicial para a prática de ato legalmente devido) obstará a que os particulares possam lançar mão deste processo especial regulado no RJUE, a partir de 4 de março de 2024, relativamente a todos e quaisquer procedimentos de licenciamento em curso.
Na verdade, por força do teor da disposição normativa contida no artigo 23º do Decreto-Lei nº 10/2024, de 8 de janeiro, não é aplicável a formação de deferimento tácito aos referidos procedimentos. Sendo certo que, a partir do próximo dia 4 de março, passará esta a ser a regra em matéria de procedimentos urbanísticos quando se mostrem ultrapassados os prazos fixados para a prática de um qualquer ato no âmbito dos mesmos.
Consabidamente, o legislador entendeu, por razões que se prendiam, fundamentalmente, com a ampla discricionariedade que existia no domínio da apreciação e decisão dos procedimentos de licenciamento, e ao contrário do determinado para os demais procedimentos regulados no RJUE, que a ausência de decisão por parte da Administração dentro dos prazos especialmente fixados naqueles procedimentos de licenciamento não equivaleria ao deferimento tácito da pretensão deduzida.

Imagem criada através de Inteligência Artificial (DALL-E 2)
Consequentemente, para estas situações, instituiu-se um processo próprio – a intimação judicial para a prática de ato legalmente devido – que difere em vários aspetos, desde logo e com relevante importância, por se tratar de um processo urgente, da ação para condenação à prática de ato devido prevista no Código de Processo nos Tribunais Administrativos. Ou seja, reconhecendo o legislador dificuldades na atribuição de efeitos positivos ao silêncio da Administração quando em causa está um procedimento de licenciamento, não deixou também de identificar a importância de o particular poder socorrer-se, em nome de uma tutela jurisdicional efetiva, nessas situações, de um meio jurisdicional próprio e bastante célere que lhe permita obter em tempo útil uma decisão da Administração. E, a final, mesmo mantendo-se o silêncio da Administração, prosseguir com a sua pretensão (cf. 113º do RJUE).
Tendo presente este enquadramento, como interpretar, então, esta opção do legislador de, por um lado, expressamente optar por não aplicar aos procedimentos de licenciamento em curso a formação do deferimento tácito (aplicável, portanto, apenas aos procedimentos deste tipo que se iniciem a partir de 4 de março), e, por outro, sem reservas, revogar da ordem jurídica o processo especial de intimação consagrado no RJUE.
Terá o legislador simplesmente alterado o seu entendimento relativamente à relevância, para salvaguarda da tutela jurisdicional efetiva, da consagração de um processo especial de intimação em matéria urbanística que outrora lhe pareceu essencial, ou, pelo contrário, estaremos perante um lapso do legislador que não atentou devidamente nos efeitos produzidos pelo teor das referidas disposições do Decreto-Lei nº 10/2024, de 8 de janeiro, em matéria de revogação e aplicação no tempo das alterações ao regime jurídico em apreço?
Na nossa perspetiva, independentemente da razão que esteja subjacente a esta opção, não poderemos deixar de sublinhar que a inaplicabilidade do processo de intimação instituído pela disposição do artigo 112º do RJUE aos procedimentos ainda em curso, e relativamente aos quais não haverá formação de deferimento tácito, não poderá deixar de enfermar de inconstitucionalidade, neste segmento, a norma revogatória do Decreto-Lei nº 10/2024, de 8 de janeiro.
Com efeito, como fazer passar com sucesso pelo crivo do princípio da igualdade esta opção do legislador que trata diferentemente particulares que se encontram exatamente na mesma situação perante a Administração, isto é, apresentaram em momento anterior a 4 de março de 2024 os seus procedimentos de licenciamento, sendo que aqueles cujos procedimentos se encontram nesta data pendentes não poderão socorrer-se mais daquele meio jurisdicional.
Esta será, no nosso modesto entender, uma questão que merecerá ainda uma atenção cuidada de todos aqueles que se dedicam e trabalham no domínio do urbanismo.