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Opinião: A formação das decisões de resolução não sancionatória dos contratos pelo Contraente Público – uma exceção ao princípio da participação?

Por Bruno Moreira, Associado Sénior da Kausa Advogados

Na execução dos contratos administrativos, o legislador confere ao Contraente Público os denominados “poderes exorbitantes” de conformação da relação contratual, dos quais destacamos o de resolver unilateralmente o contrato, nos termos do disposto na alínea e) do artigo 302.º do Código dos Contratos Públicos (CCP).

O legislador português consagrou, nos artigos 307.º, n.º 2, e 309.º, n.ºs 1 e 2, do CCP, um entendimento tradicional de que as declarações do Contraente Público, através dos quais exerce os referidos poderes de conformação, revestem a natureza de atos administrativos, dotados de executividade e executoriedade.

A resolução unilateral, por via de decisão unilateral do Contraente Público, constitui causa de extinção dos contratos administrativos, como dispõe o artigo 330.º, alínea c), parte final, do CCP, podendo esta ter como fundamento, em traços gerais, o incumprimento do contrato pelo Cocontratante (cf. o artigo 333.º, designada por resolução sancionatória), razões de interesse público, mediante o pagamento de justa indemnização ao Cocontratante (cf. o artigo 334.º), ou “outros fundamentos de resolução” (cf. o artigo 335.º), que se reconduzem, tão-só, à alteração anormal e imprevisível das circunstâncias, tal como definida no artigo 312.º, alínea b), do CCP.

Esta última modalidade de resolução unilateral poderá implicar também o pagamento de justa indemnização ao Cocontratante, caso a alteração das circunstâncias seja imputável aos efeitos de uma decisão do Contraente Público, adotada fora dos referidos “poderes exorbitantes”, i.e., uma medida anormal e imprevisível do Contraente Público que afete especificamente o equilíbrio do contrato, em prejuízo do Cocontratante.

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Estabelece o artigo 308.º, n.º 1, do CCP que a formação das decisões adotadas pelo Contraente Público no exercício dos referidos poderes (apesar da sua natureza de atos administrativos) encontra-se dispensada das formalidades previstas no Código do Procedimento Administrativo (CPA), excetuando o n.º 2 do mesmo artigo, porém, que a aplicação de sanções contratuais está sempre sujeita a audiência prévia do Cocontratante, nos termos gerais dos artigos 121.º a 125.º do CPA, como bem aponta a doutrina, por força do comando constitucional da proibição da indefesa “em quaisquer processos sancionatórios”, previsto no artigo 32.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa (CRP), independentemente, pois da natureza administrativa da sanção a aplicar.

Fora destes últimos casos, tem-se entendido ([1]) que não há exigência legal para a realização de audiência prévia do Cocontratante, incluindo-se aqui os demais atos de resolução unilateral pelo Contraente Público, pela sua natureza não sancionatória (fundados em razões de interesse público ou na alteração anormal e imprevisível das circunstâncias), numa interpretação a contrario do disposto no artigo 308.º, n.º 2, do CCP.

Entendemos, contudo, salvo o devido respeito, que não foi nem é essa a intenção do legislador, à luz da coerência intrínseca do sistema, pois consagra, no n.º 1 do artigo 308.º do CCP, que a formação dos atos administrativos praticados pelo Contraente Público apenas não está sujeita ao regime da “marcha do procedimento” do CPA, mantendo-se a obrigação do Contraente Púbico observar os princípios gerais da atividade administrativa previstos no Capítulo II da Parte I daquele Código. ([2])

Destes princípios destacamos o da “participação dos particulares (…) na formação das decisões que lhes digam respeito, designadamente através da respetiva audiência”, como dispõe o artigo 12.º do CPA, corolário da disposição constitucional do artigo 267.º, n.º 1, da CRP.

Efetivamente, não deixou o legislador de prever, no artigo 124.º, n.º 1, do CPA, que a audiência dos interessados pode ser dispensada em certos casos, designadamente, quando a decisão seja urgente, seja razoavelmente de prever que a audiência pode comprometer a execução ou a utilidade da decisão, os interessados já se tiverem pronunciado sobre as questões que importem à decisão ou a decisão a proferir se preveja ser inteiramente favorável aos interessados.

Entendemos, assim, que o n.º 2 do artigo 308.º do CCP deve ser interpretado, por imperativo do artigo 32.º, n.º 10, da CRP, no sentido de que o Contraente Público não poderá dispensar a audiência prévia do Cocontratante quando esteja projetada a resolução sancionatória do contrato, afastando, assim, a possibilidade de dispensa da audiência prevista na lei geral ([3]).

E, alinhando com uma posição já sedimentada na doutrina ([4]), quanto aos atos de resolução não sancionatória, por estar em causa a adoção de atos potencialmente lesivos da posição jurídica do Cocontratante, do artigo 308.º, n.º 1, do CCP decorre que, à luz do princípio da participação, deverá o Contraente Público promover a respetiva audiência prévia, sob pena de invalidade formal do ato resolutivo, não obstante a possibilidade de a mesma ser dispensada caso se verifique alguma das fattispecies previstas no artigo 124.º, n.º 1, do CPA.

Independentemente da natureza mais ou menos discricionária dos “poderes exorbitantes” inerentes à resolução não sancionatória do contrato, apenas assim pode o Contraente Público garantir o cumprimento do postulado do artigo 267.º, n.º 5, da CRP, ouvindo efetivamente o Cocontratante sobre o acerto, de facto e de direito, das respetivas decisões de resolução contratual, tomando os contributos destes particulares que, na qualidade de Cocontratante, informam a decisão administrativa sobre aspetos relevantes da execução do contrato a que estiveram adstritos e, ainda, prevenindo subsequentes litígios, em sede administrativa ou jurisdicional (designadamente relativos ao pagamento de indemnizações decorrentes da resolução) que, mediante a participação prévia do Cocontratante, este se demitirá de prosseguir.

Exortamos, assim, os tribunais administrativos a adotarem uma interpretação do artigo 308.º, n.ºs 1 e 2, do CCP consonante com o princípio da participação efetiva do Cocontratante na formação das decisões de resolução unilateral do contrato, por razões de interesse público ou por alteração anormal e imprevisível das circunstâncias, em coerência com o sistema jurídico, globalmente considerado.


([1])  Cf. o Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte de 28.01.2022, proferido no âmbito do proc. n.º 00781/20.5BEPRT, disponível em www.dgsi.pt.

([2]) Como bem aponta Miguel Assis Raimundo, in Direito dos Contratos Públicos, Vol. II (Regime Substantivo), AAFDL, Lisboa, 2023, p. 88.

([3])  Exceção feita ao disposto na alínea e) do n.º 1 do artigo 124.º do CPA, como entendeu o Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 04.04.2019, proferido no âmbito do proc. n.º 376/11.4BELLE, disponível em www.dgsi.pt.

([4])  Cf. Marcelo Rebelo de Sousa/André Salgado de Matos, in Direito Administrativo Geral, Tomo III (Atividade Administrativa), 2ª ed., Dom Quixote, Lisboa, 2009, p. 418; Pedro Miguel Matias Pereira, Os Poderes do Contraente Público no Código dos Contratos Públicos, Coimbra Editora, Coimbra, 2011, p. 112; Jorge Andrade da Silva, Código dos Contratos Públicos – Anotado e Comentado, 5ª ed., Almedina, Coimbra, 2015, p. 624.