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Opinião: O processo de transferência de competências para os municípios – Lei nº 50/2018, de 16 de agosto – o primeiro balanço

Por Martim Lopes Nogueira, Advogado Estagiário da Kausa Advogados

No passado dia 01.04.2024, foi divulgado o relatório do Tribunal de Contas[1] sobre o processo de transferência de competências para os municípios, que abrangeu o período de 01.01.2019 a 30.09.2022. A Lei nº 50/2018, de 16 de agosto, que aprovou a Lei-Quadro da transferência de competências para as autarquias locais e para as entidades intermunicipais, veio alterar o paradigma nesta matéria para os municípios ao acrescentar uma nova dimensão ao processo de descentralização no nosso país, mas trouxe, também, novos desafios à gestão autárquica.

Os municípios que aceitaram a transferência de competências adquiriram novas atribuições e deveres, com especial enfoque para os domínios da educação, saúde e ação social, concretizados, respetivamente, pelos Decretos-Lei nº 21/2019 e nº 23/2019, ambos de 30 de janeiro, e o Decreto-Lei nº 55/2020, de 12 de agosto. Juntamente com as competências, foram também transferidos os recursos financeiros, humanos e patrimoniais necessários, ou assim era suposto, para a prossecução das atribuições adquiridas. Sobre isto, dispõe o artigo 5º, nº 4, da Lei nº 50/2018, de 16 de agosto, que “[à] transferência de recursos financeiros para os Municípios corresponde a uma redução da despesa orçamental de igual montante nos serviços da administração direta e indireta do Estado cujas competências são objeto de descentralização”. Este princípio de neutralidade financeira é, na nossa opinião, o elemento caracterizador, mas, também, mais controvertido, do processo de transferência de competências. Muitos dos municípios que recusaram, num primeiro momento, integrar este processo consideraram as verbas transferidas para a execução das competências transferidas muito inferiores às verdadeiramente necessárias para possibilitar a oferta dos serviços públicos às suas comunidades locais.

Sobre isto, o Tribunal de Contas conclui no seu relatório que “[o]s ajustamentos introduzidos no processo, nomeadamente os resultantes dos acordos celebrados entre o Governo e a ANMP, visaram, essencialmente, satisfazer aspetos identificados pelos municípios, como alegadas insuficiências no financiamento e operacionalização ou na partilha de responsabilidades”. Na nossa opinião, as críticas avançadas pelos municípios e pela Associação Nacional de Municípios Portugueses (ANMP) sobre o subfinanciamento associado à transferência de competências são válidas e demonstram bem a realidade, que não é surpresa para ninguém, da falta de investimento nos serviços públicos.

O processo de transferência de competências para os municípios pretende concretizar, além da descentralização administrativa, os princípios da autonomia local e da subsidiariedade, de forma a promover a eficiência e eficácia da gestão dos recursos públicos e a permitir que sejam as autarquias Locais a executar as atribuições indispensáveis à prossecução dos interesses das suas respetivas comunidades locais e regionais. Conforme afirma o Tribunal de Contas no seu relatório, “[a] transferência de competências para os Municípios representa um importante processo de reorganização do Estado (…) prosseguindo políticas públicas numa estratégia de desenvolvimento do país que privilegie uma maior coesão territorial”.

O Tribunal de Contas, no entanto, aponta alguns aspetos que falharam neste âmbito, nomeadamente, “[n]o planeamento do processo de transferência de competências não se encontra evidência da existência de estudos atualizados que permitissem identificar os domínios a descentralizar, a estimativa dos ganhos de eficiência daí resultantes, bem como os critérios de apuramento dos montantes a considerar no FFD” (Fundo de Financiamento da Descentralização). Em relação aos prazos para a aceitação da transferência de competências, foram incumpridos os prazos estabelecidos na Lei devido à COVID-19 e a todos os constrangimentos associados à situação pandémica vivida. Acrescenta-se, ainda, que o acompanhamento e monitorização deste processo de descentralização tem revelado fragilidades, concretamente relativamente à Comissão de Acompanhamento da Descentralização (CAD). Lê-se no relatório do Tribunal de Contas que “não foi municiada da informação necessária, designadamente financeira, que lhe permitisse avaliar a adequabilidade dos recursos financeiros de cada área de competências, ficando, assim comprometidos os objetivos para que foi criada”.

Por fim, não descuramos a importância do processo de transferência de competências para os municípios, enquanto instrumento de descentralização administrativa que visa o aumento da coesão territorial, a melhoria dos serviços públicos, a eficiência e eficácia da gestão dos recursos públicos e a proximidade dos serviços às populações locais. No entanto, após a análise do relatório do Tribunal de Contas, concluímos que faltou planeamento à implementação do processo de transferência de competências e observamos que muitos municípios não dispunham dos meios financeiros, humanos e patrimoniais necessários para cumprir eficazmente as atribuições adquiridas. A descentralização administrativa não deve ser concretizada apenas e só porque está prevista constitucionalmente ou porque, simplesmente, constitui um dos critérios para o cumprimento da meta fixada no Plano de Recuperação e Resiliência (PRR). A descentralização deve, sim, ser aprofundada e prosseguida se isso se traduzir em melhorias concretas no quotidiano das populações, em aumentos nos níveis de coesão territorial e incrementos na eficiência e eficácia da gestão dos recursos públicos.

[1] https://www.tcontas.pt/pt-pt/ProdutosTC/Relatorios/relatorios-oac/Documents/2023/rel-oac004-2023-2s.pdf