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Opinião: O Apoio e Patrocínio Judiciário aos Militares das Forças Armadas

Por Fernando Ramos, Advogado Associado da Kausa Advogados

A Constituição da República Portuguesa (adiante CRP), garante a todos os cidadãos portugueses «o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos.» consagrando também que «Todos têm direito, nos termos da lei, à informação e consulta jurídicas, ao patrocínio judiciário e a fazer-se acompanhar por advogado perante qualquer autoridade.» cf. Artigo 20º, nºs 1 e 2 da CRP (sublinhado nosso).

Tal garantia é alargada aos «cidadãos da União Europeia, bem como aos estrangeiros e aos apátridas com visto de residência válido desde que demonstrem estar em situação de insuficiência económica.» cf. Artigos 6º, nº 4; 7º e 16º, nº 7 da Lei nº 34/2004, de 29 de Julho, alterada pela Lei nº 2/2020, de 31 de março.

Aos militares das Forças Armadas está também, de forma mitigada como se verá, garantido o direito à concessão de apoio e patrocínio judiciário, pese embora por razões subjacentes aos princípios do Estado de Direito, haver uma efetiva restrição de direitos consagrada constitucionalmente, o que até se entende pelas limitações plasmadas na Lei de Defesa Nacional  (adiante LDN), que impõe, sob a epígrafe de Direitos Fundamentais, que «Os militares na efetividade de serviço, dos quadros permanentes e em regime de voluntariado e de contrato, gozam dos direitos, liberdades e garantias constitucionalmente previstos, com as restrições ao exercício dos direitos de expressão, reunião, manifestação, associação e petição coletiva e a capacidade eleitoral passiva constantes da presente lei, nos termos da Constituição.» cf.  Artigo 26º da LDN (sublinhado nosso).

Assim, no universo dos Direitos, Liberdades e Garantias que constitucionalmente protegem todos os cidadãos do livre arbítrio, há um espectro menor de direitos que gravitam em torno da condição militar e dos militares per se, tal como resulta do disposto no Estatuto dos Militares das Forças Armadas, adiante EMFAR (Decreto-Lei nº 90/2015 de 29 de Maio).

Resulta, assim, da sua condição militar uma restrição efetiva de «direitos, liberdades e garantias reconhecidos aos demais cidadãos, estando o exercício de alguns desses direitos e liberdades sujeito às restrições constitucionalmente previstas, na estrita medida das exigências próprias das respetivas funções, e nos termos previstos na LDN» cf. artigo 16º, nº 1, do EMFAR.

Esta norma refere expressamente uma delimitação positiva e uma delimitação negativa na sua aplicação aos militares, consagrando uma proibição absoluta, pois «O militar não pode ser prejudicado ou beneficiado em virtude da» (…) «situação económica» (…)», isto é, a proibição tanto é negativa (prejuízo) como positiva (benefício), cf. artigo 16º, nº 2 do EMFAR.

Quer isto dizer que do leque de direitos que se encontram, ope legis, restritos aos militares, a concessão do apoio e patrocínio judiciário sofre ainda restritivamente uma condição de verificabilidade de pressupostos de natureza que se pretendia objectiva e não subjectiva, como adiante se verificará, pese embora resulte cristalinamente da lei que  «O militar tem direito a receber do Estado proteção jurídica nas modalidades de consulta jurídica e apoio judiciário, que abrange a contratação de advogado e a dispensa do pagamento de custas e demais despesas do processo, para defesa dos seus direitos e do seu bom nome e reputação, sempre que sejam afetados por causa de serviço que preste às Forças Armadas ou no âmbito destas. cf. artigo 20º, nº1 do EMFAR.

Assim, se um militar no desempenho das suas funções e por causa delas tenha, para defesa dos seus direitos, bom nome e reputação, de recorrer à proteção jurídica do Estado, a qual passa inclusive pela contratação de um advogado a expensas do próprio Estado, esse direito não lhe está ab initio garantido, pois dispõe a lei que só «Nos casos em que for concedida proteção jurídica nos termos do disposto no número anterior», isto é, quando para «defesa dos seus direitos e do seu bom nome e reputação, sempre que sejam afetados por causa de serviço que preste às Forças Armadas ou no âmbito destas.» cf. artigo 20º, nº 2 do EMFAR, é que lhe pode ser concedido, ou não, o apoio e patrocínio judiciário, tendo o legislador ficado por clarificar quais os casos em que esteja em causa, quanto a um militar, a defesa dos seus direitos, do seu bom nome e da sua reputação, sempre que os mesmos sejam afectados por causa das funções desempenhadas e no exercício das mesmas, não preenchendo os conceitos que se impunha ter preenchido, tendo deixado, assim, ao intérprete e aplicador do EMFAR um campo amplo interpretativo e decisório, cremos de balizas inusitadas, que vai muito para além do que é razoável num Estado de Direito.

Tem demonstrado a prática na aplicação da concessão de apoio e patrocínio judiciário a militares das Forças Armadas que é o intérprete e o aplicador do EMFAR a decidir, de acordo com a sua interpretação dos factos, ou de acordo com as diretrizes que receber, sempre subjetivas, sejam elas políticas ou de mero corporativismo negativo interno das Forças Armadas, se o militar é merecedor ou não de tal apoio, mas não por aplicação de critérios objetivos como a realidade já demonstrou. Quer isto dizer que a análise em fase ainda embrionária de uma investigação ou de um inquérito sobre alegados factos já conhecidos, mormente via media, por quem determina a concessão ou não de apoio e patrocínio judiciário, irá condicionar, como já condicionou, positiva ou negativamente a decisão de concessão de tal direito, o que entendemos ter resultado já da acção das chefias militares para decidir se era ou não concedido apoio jurídico a militares quando ancoraram as suas decisões, positivas ou negativas de tal concessão, no preenchimento do sentido e alcance que dão, subjectivamente, à letra da lei «Nos casos em que for concedida proteção jurídica nos termos do disposto no número anterior» cf. artigo 20º, nº 2 do EMFAR.

Mas a lei também estabelece um direito de garantia ao Estado de se ver ressarcido do que despendeu em apoio e patrocínio judiciário a um militar quando lhe for «concedida proteção jurídica nos termos do disposto no número anterior e resulte, no âmbito do processo judicial, condenação por crime doloso cuja decisão tenha transitado em julgado, as Forças Armadas podem exercer o direito de regresso» cf. artigo 20º, nº 2 do EMFAR, pelo que não se vislumbra, atento o teor do disposto na norma supra, que razão subjaz à não concessão de tal apoio.

Se por um lado entendemos que poderá estar em causa, a exemplo, a prática de crime cujos indícios causem alarme social e desprestigio para as Forças Armadas que conduzam à não concessão do apoio e patrocínio judiciário, por outro lado também entendemos que estando a acção dos militares perfeitamente delineada, verbi gratia, em atos de instrução ou de componente operacional determinadas e autorizadas superiormente, que possam colocar, por natureza da acção militar, em causa a integridade física dos intervenientes, não seja concedido tal apoio e patrocínio judiciário, o que per si é já uma obliteração plena de uma das traves mestras  do moderno Estado de Direito que Portugal alega ser; o princípio in dubio pro reu.

É que de acordo com a interpretação do disposto no artigo 16º, nº 2 do EMFAR,  que expressamente refere a não discriminação de militares, negativa ou positiva, em razão da situação económica, não se vislumbra como se compagina esta disposição com o lavrado no artigo 20º, nº 2, do mesmo diploma, pela atribuição a militares de patentes e cargos mais elevados um apoio e patrocínio judiciário com todos os encargos pagos, independentemente do posto e poder económico, e a outros de patentes mais baixas cujo poder económico é menor, insuficiente mesmo para fazer face a processos judiciais morosos, lhe é negado todo e qualquer apoio sem motivação subjacente que colha credibilidade equitativa.

Por força de lei há uma consagração de direitos na proteção e apoio judiciário ao militar mesmo que venha ser condenado «por crime doloso cuja decisão tenha transitado em julgado» (cf. artigo 20º, nº 2 do EMFAR), sublinhado nosso. Isto é, se um militar no desempenho das suas funções ou por causa delas pratique por acção, ou omissão, um crime cujos factos consubstanciem praticas ilícitas correspondentes aos três tipos de dolo tipificados no artigo 13º do Código Penal, ainda assim deveria sempre beneficiar de apoio judiciário por parte do Estado, havendo em caso de condenação direito de regresso por parte deste face ao militar.

De permeio sempre se dirá que um militar no exercício de funções e por causa delas não beneficia de apoio judiciário comum prestado pela segurança social, pelo que se o não beneficia das Forças Armadas ficará desprotegido em clara violação do Princípio da Igualdade consagrado no artigo 13º, nº 1 da CRP que impõe que «Todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei», acrescentando a lei fundamental que « Ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de (…) « situação económica» cf. artigo 13º, nº 2.

Por fim, o que não se vislumbra aceitável à luz de um Estado de Direito que se clama ser Portugal, é que seja o interprete e aplicador do EMFAR a determinar em que casos concede ou não apoio e patrocínio judiciário, arrogando-se inclusive no direito de escolher defensor para um militar obliterando em absoluto, uma vez mais, o comando constitucional que impõe que  « O arguido tem direito a escolher defensor e a ser por ele assistido em todos os actos do processo, especificando a lei os casos e as fases em que a assistência por advogado é obrigatória» cf. artigo 32º, nº 3 da CRP.

«A justiça nunca será feita até aqueles que não são afetados se indignarem como os que são.» Benjamin Franklin