Por Filipa Guedes da Silva, Advogada Estagiária da Kausa Advogados
Salvaguarda-se no artigo 32º, nº 10, da Constituição da República Portuguesa (CRP), quanto às garantias do processo criminal, a constitucionalização do direito de defesa, podendo ler-se que “[n]os processos de contraordenação, bem como em quaisquer processos sancionatórios, são assegurados ao arguido os direitos de audiência e defesa”.
Neste sentido, há uma clara exigência de assegurar formalidades essenciais que garantam, por um lado, a efetiva e necessária audiência do arguido em momento que anteceda a sua punição, e, por outro, a viabilidade de ser por si apresentada ‘a sua verdade’, fazendo prova dos factos que relevem a respeito da conduta que lhe é imputada. Só assim se abre caminho para que, ao longo do processo de construção da decisão final, sejam ouvidos e considerados os argumentos de ambas as partes, de modo que, deste confronto, resulte a decisão – sancionatória, ou não – mais próxima da verdade possível.
Naturalmente, no plano do Direito do Desporto, nomeadamente no enquadramento normativo das várias Federações desportivas, é necessário regular mecanismos disciplinares próprios que visem a apreciação e sancionamento de infrações, como são exemplo os Processos Sumários. Importa desde já deixar claro que tratamos de processos disciplinares que, naturalmente, têm natureza sancionatória, cujo propósito é punir com uma sanção as infrações cometidas pelos agentes, clubes, sociedades ou espectadores que integram o mundo do desporto, pelo que a eles se aplica o já referido artigo 32º da CRP e a garantia de defesa que lhe é inerente.
Este meio processual nasce também no universo desportivo assente numa característica de celeridade na aplicação de sanções disciplinares, tendo o propósito de promover a rápida análise e resolução de litígios menos gravosos, cujas sanções serão também elas mais leves.
No entanto, como em qualquer meio à nossa disposição, nem tudo são virtudes, tanto que ao proceder à análise dos vários Regulamentos de Disciplina que se encontram à distância de meros cliques, e especialmente quando nos confrontamos diretamente com este tipo de casos, suscitam-se questões quanto à razoabilidade dos prazos concedidos pelas entidades desportivas no que toca à defesa dos arguidos salvaguardada na CRP.
Vejamos algumas das normas relativas aos Processos Sumários:
De acordo com o Regulamento Disciplinar da Federação Portuguesa de Futebol, à luz do seu artigo 247º, quanto à tramitação desta forma de processo pode ler-se que “A decisão em processo sumário é sustentada em relatórios do jogo, dos elementos das forças de segurança pública ou dos delegados da FPF, em fichas técnicas, em autos administrativos previstos na alínea e) do número 1 do artigo anterior, em imagens recolhidas por operador televisivo ou na espontânea confissão do arguido”, sendo que no seu nº 5 refere-se, quanto aos prazo de defesa, que “Os arguidos são notificados do relatório do jogo e do relatório do delegado da FPF, quando exista, podendo, no prazo de 24 horas após a notificação dos relatórios ou da notificação a que se refere o número 3 do artigo anterior, apresentar defesa escrita, podendo apenas juntar documentos ou depoimentos escritos, sendo a prova produzida perante o instrutor responsável pelo relatório a submeter nos termos do número 2 do presente artigo”.
Mais ainda, no nº 6 do referido artigo menciona-se inclusivamente o seguinte: “[o] prazo mencionado no número anterior pode ser reduzido em função das necessidades inerentes ao decurso das competições desportivas, por decisão do órgão disciplinar”.
Noutro exemplo, passemos à leitura do Regulamento de Disciplina da Federação Portuguesa de Basquetebol que, à luz do seu artigo 1º, “(…) tem por objeto o sancionamento da violação das regras da ética desportiva, das regras do jogo e de outras normas que se encontrem regularmente previstas, no âmbito das atividades da competência da FPB”.
Ora, a alínea b) do artigo 6º deste mesmo Regulamento refere, entre os direitos do Arguido, “[o] direito de audiência e de apresentação da sua defesa”, acrescentando no seu artigo 7º que “[o] procedimento disciplinar não está sujeito a formalidades especiais, devendo contudo salvaguardar todos os direitos do arguido”. Porém, no artigo 112º, alínea b), quando estabelece as normas aplicáveis à tramitação do Processo Sumário enquanto forma do procedimento disciplinar admitida no artigo 99º, limita a contestação do alegado infrator, dado que “[o] arguido dispõe de dois dias úteis para apresentar a sua defesa”, sendo, para este efeito, “(…) admitida prova documental, prova testemunhal produzida através de depoimento escrito, ou através de gravação de áudio ou vídeo” segundo disposto na alínea c).
Já no Regulamento de Disciplina da Federação Portuguesa de Voleibol, quanto à possibilidade de defesa na tramitação do Processo Sumário, prevê-se no seu artigo 230º, nº 2, que “[a] infração pela qual se encontra indiciado, é notificada ao arguido, para efeitos de audição prévia nas 24 horas seguintes”, a que, quanto ao seu conteúdo, se acresce no nº 3 que “[o] direito de audição prévia é sempre exercido através de requerimento escrito a remeter, por correio eletrónico para o endereço do órgão competente para o apreciar, sendo apenas admitida prova documental, incluindo o depoimento escrito de testemunhas, que deve acompanhar a defesa”.
Iguais fórmulas são aplicadas por outras entidades desportivas quanto à defesa escrita do Arguido, como são exemplo a Liga Portugal, a Federação Portuguesa de Andebol, a Federação Portuguesa de Patinagem ou a Federação Portuguesa de Hóquei, ao concederem prazo de um dia para esse efeito.
À primeira vista, atendendo à intensidade do universo desportivo, às marcações de jornadas com curta distância, e à pretendida celeridade nos processos de decisão que interferem diretamente com o planeamento dos agentes desportivos, os períodos temporais supra mencionados para apresentação das respetivas defesas podem parecer-nos adequados e razoáveis. Contudo, no campo da prática, prazos que não ultrapassam as 24 horas, ou até mesmo as 48 horas, em nosso entender, revelam-se em larga medida insuficientes e, não menos vezes, um tanto ou quanto atentatórios e restritivos do efetivo direito de defesa.
Caberá colocar numa balança a celeridade que se pretende obter com esta forma processual e o objetivo máximo de qualquer processo sancionatório: que seja feita Justiça. Tal só será possível, no nosso modesto entender, se a todos os intervenientes for garantido um processo justo e equitativo que implica, naturalmente, serem preservados prazos razoáveis que respeitem as garantias devidas ao Arguido, não bastando, por isso, estipulações meramente formalistas, que se limitem a fazer parecer assegurados os mais básicos direitos constitucionalmente consagrados, visando evitar entendimentos como o do douto Acórdão nº 560/2021 do Tribunal Constitucional que reiterou a inconstitucionalidade de se verem aplicadas sanções disciplinares em decurso de Processos Sumários que, à data, seguindo o Regulamento Disciplinar da Liga Portuguesa de Futebol Profissional, não asseguravam o exercício do direito ao contraditório[1].
Façamos então um paralelismo com o Processo Penal onde, entre os processos especiais, se consagra o Processo Sumário nos artigos 381º e seguintes do Código de Processo Penal (CPP). Trata-se de uma forma processual aplicável a detidos em flagrante delito nos termos do artigo 381º do CPP, sendo que, no que respeita ao direito à defesa do Arguido pode ler-se no artigo 383º do mesmo diploma que “[n]o mesmo ato, o arguido é notificado de que tem direito a prazo não superior a 15 dias para apresentar a sua defesa, o que deve comunicar ao Ministério Público junto do tribunal competente para o julgamento e de que pode apresentar até sete testemunhas, sendo estas verbalmente notificadas caso se achem presentes”. No mesmo sentido, também quanto ao Processo Sumaríssimo previsto nos artigos 392º e seguintes do CPP e apenas aplicável nas situações em que o Ministério Público entenda que só se deva aplicar “pena ou medida de segurança não privativas da liberdade”, é referido no artigo 396º, número 1, alínea b) que o juiz “[o]rdena a notificação ao arguido do requerimento do Ministério Público e, sendo caso disso, do despacho a que se refere o nº 2 do artigo anterior, para, querendo, se opor no prazo de 15 dias”.
Ora, dificilmente se entende que até mesmo em processos especiais de distinta complexidade, em princípio de factualidade mais evidente, se conceda prazo mais dilatado para o exercício do direito ao contraditório.
Em suma, ainda que se compreenda, como se disse supra, a necessidade de rapidez na tomada de decisão que decorre da intensidade dos calendários desportivos, o confronto, na esmagadora maioria dos casos, com prazos tão curtos para audiência dos Arguidos – entre 24 e 48 horas –, inclina-nos para a ideia de que este tipo de regulamentação está ferido de inconstitucionalidade, por não ser passível de assegurar a nenhum agente, clube ou sociedade, por melhor intencionado que esteja, uma defesa estruturada, respaldada em informação relevante, capaz de identificar testemunhas e que se configure efetiva e coerente com os seus direitos e interesses.
Será razoável que tudo isto se revele comprometido, contrariando os princípios de defesa que presidem à redação da CRP, por não se ver efetivamente concedido um prazo sensato que, para além do mais, permita que também a quem delibere sejam proporcionados todos os elementos para um juízo igualmente fundamentado, como é seu direito e dever? Será tudo isto suficiente para passar o crivo da Constituição, em nome da verdade desportiva? E o que pensar desta verdade desportiva quando, por força dos prazos estabelecidos, o arguido veja coartado o seu direito de defesa e com isso sofra sanções desportivas injustas?
[1] https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20210560.html