Por Filipa Guedes da Silva, Advogada-estagiária da Kausa Advogados
Quatro anos depois, foi agora dada a conhecer a decisão do Juízo Local Criminal de Guimarães do Tribunal Judicial da Comarca de Braga no sentido de absolver dois adeptos do Vitória SC que entenderam recorrer da aplicação de uma coima no valor de 750,00€ que lhes havia sido aplicada pela Autoridade para a Prevenção e o Combate à Violência no Desporto (APCVD), em consequência de cânticos e da exibição de tarjas a visar a Liga Portugal, o seu presidente Pedro Proença, a autoridade policial e, inclusive, o Governo, em jogo que opôs a equipa da Cidade Berço ao Rio Ave, disputado em janeiro de 2020.[1]
Esta sentença reabre o debate público quanto à difícil ponderação que deve merecer um justo balanceamento entre os naturais direitos e interesses dos agentes desportivos – e não só desportivos, diga-se – face ao comportamento dos adeptos nas bancadas dos espetáculos desportivos, muitas vezes colocado num limbo entre os limites à liberdade de expressão de cada cidadão e aquilo que, desde logo, afeta a esfera de um terceiro
Cabe, neste âmbito, a discussão quanto à amplitude da liberdade de expressão constitucionalmente consagrada e à admissão do seu condicionamento que, em certos casos, nos parece um tanto ou quanto desajustado. Não haja qualquer dúvida de que não poderá valer tudo e as bancadas não poderão ser o ‘faroeste’ onde, sob a capa da liberdade individual, toda e qualquer ‘opinião’ possa ou deva ser defendida. No entanto, também não deverá ignorar-se a necessária análise dos casos concretos, assumindo que está impedida à partida qualquer intervenção dos espectadores que se encontram nos recintos desportivos.
Ao abrigo do artigo 37º, números 1 e 2, da Constituição da República Portuguesa (CRO), determina-se o seguinte:
«1. Todos têm o direito de exprimir e divulgar livremente o seu pensamento pela palavra, pela imagem ou por qualquer outro meio, bem como o direito de informar, de se informar e de ser informados, sem impedimentos nem discriminações.
2. O exercício destes direitos não pode ser impedido ou limitado por qualquer tipo ou forma de censura.»
Ora, a liberdade de expressão constitucionalmente consagrada deverá ser cabalmente protegida; no entanto, não pode ser entendida como sendo um direito absoluto e terá, naturalmente, de se ajustar aos direitos de terceiros, nomeadamente e muito em especial quando são postos em causa a honra e o bom nome desses terceiros. Mas é também por isto, pelo conflito de interesses em causa, que urge distinguir o que é entoado ou exposto perante, por vezes, milhares de pessoas
Ofensas sem mais não deverão ser colocadas ao mesmo nível que protestos legítimos e opiniões sobre as posturas adotadas pelas entidades organizadoras dos espetáculos desportivos, as autoridades em geral e até mesmo o Governo, como sucedeu no caso em questão cuja decisão viu agora a luz do dia. Especialmente na medida em que, em parte dos casos, tratamos de ações que em nada afetam a preservação da segurança no recinto e o espírito do desporto, como se pretende. São exemplo disso as tarjas envergadas por estes dois adeptos do Vitória SC com as frases “o Governo que meta a mão a quem no futebol é ladrão” e “filhos e enteados mais uma vez discriminados” que, apesar de tudo, ainda assim acabam por traduzir posições genéricas destes cidadãos que não pretendem ofender especificamente alguém enquanto ser humano. Pelo que importa garantir que não se recorre à aplicação de sanções administrativas como modo de silenciar a contestação aos vários órgãos, abrindo precedentes que não se devem admitir.
Outro ponto passará, naturalmente, pela eficácia e sentido da responsabilização das instituições desportivas pelo comportamento dos seus adeptos, nomeadamente quando estes enverguem símbolos que os identifiquem claramente como adeptos de um determinado emblema. Será justo colocar este peso nas Instituições? Poderá partir-se do pressuposto de que, sendo estas entidades autuadas por comportamentos que muito dificilmente poderão controlar, estes se tornarão menos recorrentes? Pretende-se fazer dos clubes desportivos, muitos deles instituições de reconhecida utilidade pública, uma nova autoridade enquanto ‘polícia’ do desporto?
Estamos na presença de uma discussão que encerra várias nuances e que se torna incompreensível para o grande público quando somos confrontados com situações em que a visão redutora da legislação que é frequentemente adotada pela APCVD faz tábua rasa do mais elementar bom senso. Imaginemos que os papéis se invertem, e que os cânticos – ou tarjas – menos respeitosos são entoados e elevados em oposição aos próprios clubes? O que se diria se, depois de insultados e vaiados por adeptos identificados com as cores alusivas a um determinado emblema e aos seus dirigentes, fossem estes mesmos autuados por ofensas que, não colocando em causa a segurança do recinto, só a si visam e prejudicam? Sucede que, por mais irónico que possa parecer, este cenário não se resume ao plano do hipotético: é uma realidade com a qual são confrontados regularmente os departamentos jurídicos de clubes e sociedades desportivas. Ora, mesmo que não se alegue uma desproporcional restrição da liberdade de opinião, não deveria aqui atender-se ao bom senso na aplicação de coimas que acabam por se consubstanciar numa dupla penalização dos ofendidos?
Se há algo que esta sentença nos relembra é de que o Direito terá sempre de caminhar lado a lado com o contexto em que se pretende enquadrar, sem nunca deixar de se guiar pelo bom senso e pela racionalidade na aplicação de coimas, processos esses que nunca poderão ser automáticos e irrefletidos. Queremos um quadro normativo que garanta efetivamente a segurança dos espetáculos e respeito por todos os seus intervenientes ou que sirva, também ele, para silenciar a voz de alguns?
[1] https://www.record.pt/futebol/futebol-nacional/liga-betclic/v–guimaraes/amp/tribunal-absolve-adeptos-do-vitoria-de-guimaraes-de-coima-aplicada-pela-apcvd