Por Pedro Rafael Alves, Associado da Kausa Advogados
Foi publicado, no verão passado, o Decreto-Lei nº 75/2023, de 29 de agosto, que teve como desígnio instituir um mecanismo de aceleração do desenvolvimento das carreiras dos trabalhadores com vínculo de emprego público e produziu efeitos a partir de 1 janeiro do presente ano de 2024.
De forma a se compreender o intuito deste diploma, é necessário observá-lo no contexto histórico e político que lhe deu origem.
Na sequência de uma muito badalada escalada do défice das contas públicas que ocorreu, sensivelmente, entre 2003 e 2005, foram aprovadas várias medidas destinadas a reduzir a despesa pública, das quais se destaca a publicação da Lei nº 43/2005, de 29 de agosto e posterior alteração pela Lei nº 53-C/2006, que determinaram a não contagem do tempo de serviço para efeitos de progressão nas carreiras de todos os trabalhadores públicos desde 30 de agosto de 2005 até 31 de dezembro de 2007.
Passados apenas dois anos, em 2009, estalou a crise da dívida soberana da Zona Euro, no âmbito da qual o nosso país foi profundamente afetado e que levou, em 2011, ao resgate financeiro do Estado português pela troika, composta pelo Fundo Monetário Internacional, pelo Banco Central Europeu e pela Comissão Europeia.

Imagem criada através de Inteligência Artificial (DALL-E 2)
Esta crise financeira foi seguida de uma panóplia de medidas de austeridade, de entre as quais a instituição de vários cortes nos vencimentos e congelamento da progressão nas carreiras dos trabalhadores em funções públicas, por força do artigo 24º da Lei do Orçamento de Estado 2011, aprovada pela Lei nº 55-A/2010, de 31 de dezembro, que proibiu a prática de atos capazes de resultar em valorizações remuneratórias, medida que foi sendo sucessivamente prorrogada no tempo.
Desta vez, o travão na progressão das carreiras perdurou desde 1 de janeiro de 2011 a 31 de dezembro de 2017, pelo que apenas em 1 de janeiro de 2018 é que o tempo voltou finalmente a correr para as carreiras dos trabalhadores em função pública.
Naturalmente que, à medida que a economia portuguesa foi paulatinamente recuperando forças, foram também ganhando notoriedade as vozes que reclamavam a reposição deste tempo perdido, durante o qual ficaram suspensos projetos de vida de inúmeros portugueses que se dedicam diariamente a profissões que asseguraram o interesse público nacional – a título de exemplo, basta-nos olhar para as várias manifestações dos professores e educadores de infância ao serviço do Estado, as quais, ao longo do tempo, mobilizaram centenas de milhares de docentes.
De forma a dar resposta a esta reivindicação, foram adotadas medidas de reposição de uma parte do tempo de serviço congelado em algumas carreiras especiais nas quais o tempo de serviço tem uma larga importância na progressão na carreira, como é o caso dos professores, dos militares das Forças Armadas e da Guarda Nacional Republicana, que apenas acautelaram em parte as suas pretensões.
Foi neste contexto que foram publicados os Decretos-Lei nº 74/2023, de 25 de agosto, e nº 75/2023, de 29 de agosto, que instituíram mecanismos de aceleração da progressão na carreira dos educadores de infância, dos professores dos ensinos básico e secundário e de todas as carreiras dos trabalhadores públicos, respetivamente, com o intuito de compensar os trabalhadores prejudicados pelo congelamento da progressão na carreira, designadamente, no plano da alteração obrigatória de posicionamento remuneratório.
O Decreto-Lei nº 75/2023, de 29 de agosto, estabelece que os trabalhadores por si abrangidos, que, a partir de 2024, tenham uma avaliação de desempenho de seis pontos, ao invés dos dez pontos normalmente necessários, podem, excecionalmente, e de forma imediata, passar para a posição remuneratória seguinte.
Esta redução dos pontos necessários é aplicável apenas uma vez, pelo que consubstancia uma oportunidade única para agilizar uma mudança para o escalão remuneratório superior, com a possibilidade acrescida de os pontos em excesso serem guardados para futuras progressões.
Esta medida especial aplica-se aos trabalhadores públicos integrados em carreira que, à data da sua entrada em vigor:
- a) Efetuem a alteração obrigatória de posicionamento remuneratório em razão de pontos acumulados nas avaliações do desempenho;
- b) Detenham, no mínimo, dezoito anos de exercício de funções integrados em carreira ou carreiras, abrangendo os períodos compreendidos entre:
- i) 30 de agosto de 2005 e 31 de dezembro de 2007;
- ii) 1 de janeiro de 2011 e 31 de dezembro de 2017.
Esta iniciativa é de louvar, pois constitui um passo há muito esperado no sentido de se recuperar o tempo perdido pelos trabalhadores públicos.
Não obstante, afigura-se que a medida tomada é de tal forma circunscrita na sua aplicação que corre o risco de criar situações de injustiça, desigualdade e falta de clareza.
Desde logo a aplicação desta medida apenas aos casos em que os trabalhadores tenham prestado dezoito anos ou mais anos de exercício de funções na carreira ou carreiras e tenham sido afetados por dois períodos de congelamento, deixa de fora os trabalhadores que apenas tenham sido afetados por um ou que, por qualquer motivo, não tenham sido impactados pela totalidade de ambos.
Se o intuito do diploma é verdadeiramente corrigir os efeitos dos períodos em que a progressão na carreira se encontrou estagnada, pergunta-se se não seria mais congruente contemplar, ao mesmo tempo, uma solução parcializada e proporcional a estas situações que, ainda assim, fosse capaz de minorar os prejuízos sentidos por aqueles trabalhadores?
Por outro lado, o preâmbulo do Decreto-Lei nº 75/2023, de 29 de agosto, refere que a medida também «terá impacto nas entidades públicas empresariais integradas no Serviço Nacional de Saúde, por via dos acordos coletivos de trabalho existentes, mantendo-se para os demais contratos individuais de trabalho o desenvolvimento das carreiras previsto nos correspondentes instrumentos de regulamentação coletiva».
Como foi referido pelo Exmo. Senhor Presidente do Sindicato dos Enfermeiros, o Senhor Dr. Pedro Costa[1], este excerto parece traçar uma linha pouco definida dentro da classe profissional entre os enfermeiros com contratos individuais de trabalho, que poderá «[levar a] diferentes interpretações das administrações dos estabelecimentos de saúde, à medida dos respetivos interesses» e, como tal, se cumpre esclarecer o mais brevemente possível.
Por fim, destaca-se que já surgiram dúvidas interpretativas do Decreto-Lei nº 75/2023, de 29 de agosto, que carecem de esclarecimento por parte da Direção-Geral da Administração e do Emprego Público, designadamente, no que diz respeito aos efeitos das licenças sem remuneração e das situações de ausência em mobilidade especial ao abrigo da Lei nº 53/2006, de 7 de dezembro[2], no tempo de exercício de funções necessário para a sua aplicação.
Em síntese, é-nos possível concluir que, não obstante a bondade da solução adotada, ainda assim se vislumbra a necessidade de um futuro esclarecimento, aprofundamento e eventual extensão da mesma, pelo que nos encontramos a acompanhar esta temática com particular interesse.
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[1] Notícia de 30 de agosto publicada no sítio Atlas da Saúde, disponível aqui.
[2] Parecer nº INF_DSAJAL_TR_13259/2023 da Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Norte de 29.11.2023, disponível aqui.