Por Fernando Ramos, Advogado Associado da Kausa Advogados
A 14 de agosto de 2018, por via da publicação e entrada em vigor da Lei nº 49/2018, foi criado o Regime Jurídico do Maior Acompanhado eliminando, assim, os institutos até então vigentes da interdição e da inabilitação constantes do Código Civil de 1966.
O processo de acompanhamento tem natureza urgente e é um processo de jurisdição voluntária, com as necessárias adaptações. Isto é, opera ao longo de todo o ano, inclusive durante as férias judiciais.
Este regime tem como principal objetivo a garantia do bem-estar, da recuperação psíquica, física ou psicofísica (quando possível), assim como do pleno exercício dos direitos do maior acompanhado, focando-se na pessoa em si e não apenas no seu património, por mais diminuto que seja, visando assegurar a autodeterminação e as capacidades do beneficiário, nos casos em que são possíveis.
Não será, no entanto, concedido o regime de acompanhamento se os deveres de assistência (obrigação de prestar alimentos e a de contribuir para os encargos da vida familiar), e de cooperação (a obrigação de socorro, de auxílio mútuos e a de assumirem em conjunto as responsabilidades inerentes à vida familiar), forem suficientes para a proteção do acompanhado.
Podem requerer o regime de maior acompanhado, por si ou através de terceiros, os cidadãos maiores ou, ainda que menores, desde que o requeiram no decorrer do ano anterior ao que perfaçam 18 anos de idade. Em caso de estarem impossibilitados por razões de saúde, deficiência, ou pelo seu comportamento, de exercer os seus direitos, de forma plena pessoal e consciente, ou impossibilitados de cumprir os seus deveres, poderá e deverá o regime de maior acompanhado ser requerido por pessoa idónea ao MP ou através de mandatário diretamente ao tribunal.
O requerimento para verificação das condições e atribuição do estatuto de maior acompanhado pode ainda ser requerido ao tribunal, independentemente de autorização daquele, pelo Ministério Público (adiante MP), pelo próprio candidato ao acompanhamento ou, mediante autorização deste pelo seu cônjuge, pelo unido de facto, ou por qualquer parente na linha de sucessão. A autorização do beneficiário para requer o regime de acompanhamento pode ser suprida pelo tribunal, quando se imponham certas circunstâncias, sendo o tribunal o único órgão com competência para decidir o acompanhamento e as envolventes jurídicas do mesmo.
No caso de ser requerido ainda durante a menoridade, as responsabilidades parentais ou a tutela manter-se-ão até haver decisão transitada em julgado sobre o regime do acompanhamento.
A designação de acompanhante, que terá de ser maior e no pleno exercício dos seus direitos, poderá ser proposta ao tribunal pelas entidades e pessoas indicadas no parágrafo que antecede e é sempre feita judicialmente, sendo indicado pelo acompanhado ou pelo representante legal deste. Na falta de indicação, o acompanhamento é atribuído à pessoa que, no entender do tribunal, ouvido o MP, melhor proteja os interesses do beneficiário, sendo determinada a seguinte ordem de preferência, embora não seja imperativa:
- o cônjuge desde que não separado judicialmente ou de facto;
- o unido de facto;
- qualquer dos progenitores;
- pessoa designada pelos pais do acompanhado;
- pessoa que exerça as responsabilidades parentais;
- filhos maiores;
- pessoa indicada pela instituição em que o acompanhado esteja integrado;
- pelo mandatário a quem o acompanhado tenha conferido poderes de representação;
- outra pessoa de idoneidade reconhecida pelo tribunal.
Por regra, dependendo da avaliação de determinadas capacidades ou por escusa justificada, o cônjuge, os descendentes e os ascendentes, não se podem escusar ou ser exonerados como acompanhantes. No entanto, a lei prevê a possibilidade, de serem designados mais do que um acompanhante em simultâneo, embora com diferentes funções. Caso paradigmático quando um dos acompanhantes tenha a denominada profissão itinerante (profissionais da aviação comercial, marítimos, camionistas de longo curso, maquinistas ferroviários, entre outros).
O acompanhamento deve limitar-se ao mínimo indispensável, dando alguma liberdade e autodeterminação ao acompanhado, quando possíveis, pelo que o acompanhante tem o dever de se abster de praticar atos que causem manifesto ou potencial conflito de interesses com o acompanhado.
Considerando cada caso per se, o tribunal pode, independentemente do pedido, atribuir ao acompanhante as funções associadas aos regimes do exercício das responsabilidades parentais ou dos meios de as suprir, de poderes de representação geral ou representação especial, aqui com indicação expressa das categorias de atos para o fim a que se destinam, tais como a administração total ou parcial de bens, a autorização prévia para a prática de determinados atos ou categoria de atos e intervenções de outro tipo, desde que devidamente explicitadas ao tribunal.
O acompanhante deve, a todo o tempo, assegurar o bem-estar e a reabilitação (se possível), do acompanhado, mantendo de forma permanente o contacto com ele.
O acompanhamento cessa, ou é alterado, mediante decisão judicial que reconheça a cessação, suspensão ou alteração das causas que fundamentaram a concessão do regime de acompanhamento, podendo os efeitos da decisão retroagir à data em que se verificaram tais condicionantes, pelo que pode, por exemplo, o acompanhante ser removido da função se deixar de cumprir os deveres próprios do cargo ou mesmo que venha a revelar inaptidão para o seu exercício.
As medidas de acompanhamento decretadas pelo tribunal são revistas de acordo com a periodicidade que constar da sentença, com o limite imperativo mínimo de o serem de cinco em cinco anos.
Existe também a possibilidade de o acompanhado dispor para o futuro da necessidade do seu próprio acompanhamento (doenças degenerativas ou incapacitantes progressivas, psíquicas, físicas ou psicofísicas), pelo que o maior pode celebrar um mandato que tem como fim a gestão dos seus interesses futuros, podendo ser celebrado com ou sem poderes de representação e sendo revogável a todo o tempo.
O MP tem competência exclusiva para proferir decisões que confirmem atos praticados pelo representante do acompanhado quando no âmbito do anterior regime haja sido declarado incapaz, tendo também competência para proferir decisões relativas à confirmação da prática de atos praticados pelo tutor de interdito, ou pelo acompanhante, quando esteja decretada a interdição e o acompanhamento, respetivamente, o que exclui, desde logo a incapacidade de facto.
É também exclusiva do MP a competência no que concerne às decisões relativas a pedidos de notificação do representante legal para providenciar acerca da aceitação ou rejeição de liberalidades (doações) a favor de acompanhado incapaz.
Este novo regime veio dar, desde logo, maior garantia à manutenção do património do acompanhado, assim como garantir que este tem com o atual regime uma maior proteção jurídica face aos direitos de que é titular, impedindo-se, por exemplo, o que até 2018 sucedia.
No início deste século começou a repercutir-se na sociedade portuguesa o fenómeno da plurilocalização da família vista na vertente mínima a três gerações, iniciando-se a institucionalização de lares para recolha dos mais idosos (1ª geração), o deslocar da segunda geração para mais longe do núcleo familiar onde foram criados, perdendo os seus filhos (3ª geração) o vínculo à terra dos seus pais e avós, levando a uma perda de laços afetuosos que conduziu, em inúmeros casos, à desresponsabilização moral de cuidar dos familiares mais próximos.
Prova-o a prática jurídica e judicial que o Regime Jurídico do Maior Acompanhado não tendo o condão de resolução do problema apontado supra, veio, no entanto, mitigá-lo em larga escala através de uma aplicação criteriosa da lei ancorada numa sindicância frequente das magistraturas judicial e do MP e que merece mérito e louvor públicos.