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Opinião – A Providência Cautelar para ‘desokupar’ os imóveis

Por Martim Lopes Nogueira, Associado da Kausa Advogados

Notícias como “Portugal é o país da OCDE onde é mais difícil comprar casa”[1] ou “Crise na habitação está para durar”[2] refletem a crescente gravidade da crise de habitação em Portugal, cuja tendência, segundo especialistas[3], é para se agravar ainda mais em 2025. Como consequência direta deste problema, têm-se multiplicado as ocupações ilegais de imóveis, como tem sido relatado ultimamente por proprietários e agentes imobiliários e noticiado pelo Expresso, em 20 de março de 2025, que em Lisboa já tinham sido ocupadas abusivamente 842 casas municipais[4].

Nas ocupações ilegais de imóveis não existe qualquer relação jurídica entre o proprietário e o terceiro ocupante, uma vez que este nunca poderá ser considerado inquilino, dado que não celebrou qualquer contrato de arrendamento. Assim, nestas situações, o proprietário não pode recorrer à ação de despejo, prevista no artigo 14º do Novo Regime do Arrendamento Urbano (NRAU), aprovado pela Lei nº 6/2006, de 27 de fevereiro, destinada a cessar a relação jurídica do arrendamento quando a Lei impõe o recurso à via judicial. Tampouco poderá beneficiar do procedimento especial de despejo, previsto no artigo 15º do NRAU, aplicável quando o inquilino não desocupa o imóvel na data legalmente prevista ou acordada entre as partes.  

Contudo, ao abrigo do disposto no artigo 1279º do Código Civil (CC), “o possuidor que for esbulhado com violência tem direito de ser restituído provisoriamente à sua posse, sem audiência do esbulhador”. Essa restituição é concretizada através do procedimento cautelar de restituição provisória da posse, previsto nos artigos 377º a 389º do Código de Processo Civil (CPC). A sua principal finalidade é “repor o statu quo ante atingido por uma atuação ilícita do esbulhador[5], consubstanciando, assim, um meio célere para evitar danos irreparáveis ao proprietário. O cerne deste procedimento cautelar reside na exigência do requisito de “esbulho violento”, previsto no artigo 377º do CPC, pois, caso esse pressuposto não se verifique, a posse só poderá ser restituída após a citação e audição do esbulhador, conforme dispõe o artigo 378º do CPC. Nesses casos, a providência cautelar de restituição provisória da posse seguirá os trâmites do procedimento cautelar comum, conforme os artigos 379º, 362º e seguintes do CPC.

O nº 2 do artigo 1261º do CC define como posse violenta aquela obtida mediante “coação física, ou de coação moral nos termos do artigo 255º”. A Jurisprudência, nomeadamente o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 19.10.2016[6], tem vindo a interpretar de forma ampla este conceito, entendendo que “não implica necessariamente que a ofensa da posse ocorra na presença do possuidor” e “[b]asta que o possuidor dela seja privado contra a sua vontade em consequência de um comportamento que lhe é alheio e impede, contra a sua vontade, o exercício da sua posse como até então a exercia”. Conclui ainda o referido Acórdão que uma “[i]nterpretação mais restritiva seria redutora e deixaria sem tutela cautelar o possuidor privado da sua posse por outrem que, na sua ausência e sem o seu consentimento, actuou por forma a criar obstáculo ou obstáculos que o constrangem, nomeadamente, impedindo-lhe o acesso à coisa”.

Neste mesmo sentido, José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre defendem que “[é], pois, violento todo o esbulho que impede o esbulhado de contactar com a coisa possuída, em consequência dos meios usados pelo esbulhador”, uma vez que “[b]asta que a ação física exercida sobre as coisas sejam um meio de coagir uma pessoa a suportar uma situação contra sua vontade[7].

Não restam, pois, dúvidas de que, se na sequência da ocupação ilegal de um imóvel forem substituídas fechaduras ou instaladas vedações com o intuito de impedir o acesso do proprietário, tal atuação configura um caso de esbulho violento para efeitos da providência cautelar de restituição provisória da posse. Essa tem sido a interpretação predominante na Jurisprudência mais recente[8], adotando, dessa forma, o entendimento defendido no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19.10.2016.

              No entanto, nas situações que não se configuram como esbulho violento, estabelece o artigo 379º do CPC que a defesa da posse através da providência cautelar de restituição provisória da posse segue o procedimento cautelar comum, previsto nos artigos 362º e seguintes do CPC. Assim, em virtude de não existir esbulho violento, fica o proprietário obrigado a demonstrar a verificação dos pressupostos do procedimento cautelar comum, designadamente: a probabilidade séria da existência do direito invocado, o fundado receio de lesão grave e dificilmente reparável desse direito, a adequação da providência à situação de lesão iminente e, por último, que o prejuízo resultante da providência não seja superior ao dano que com ela se pretende evitar.

No que respeita ao segundo requisito – periculum in mora – temos verificado uma tendência jurisprudencial preocupante, que se prende com a sua desconsideração em  casos de esbulho não violento de segunda habitação, uma vez que tem sido entendido pela Jurisprudência que os danos emergentes destas situações não são de difícil ou impossível reparação. Em virtude deste entendimento, o proprietário que vê um dos seus imóveis ocupados deixa de ter acesso a uma tutela judicial célere e eficaz, ficando, assim, à mercê de uma ação declarativa de restituição da posse e, consequentemente, durante um período indeterminado – mas certamente longo, face à morosidade existente nos nossos Tribunais – suportando os respetivos danos. Não obstante este entendimento jurisprudencial, somos da opinião que é profundamente injusto o proprietário esbulhado suportar as despesas inerentes à habitação, assim como ver-se impossibilitado de dispor, de forma livre, do seu imóvel, enquanto o terceiro que ocupou a sua casa nela vive sem incorrer em qualquer custo.

Consideramos que, nas situações em que é manifesto que alguém simplesmente ocupa a habitação de outrem sem dispor de qualquer título possessório legítimo, a providência cautelar de restituição provisória da posse deveria prosseguir os termos previstos nos artigos 377º e 378º do CPC, mesmo não se configurando como esbulho violento, ou seja, ser possível requerer a restituição provisória da posse e a mesma ser ordenada sem a citação nem audiência do esbulhador. Esta modalidade da providência cautelar de restituição provisória da posse, motivada pela manifesta simplicidade de prova do esbulho, garantia, assim, efetivamente uma defesa justa, eficaz e célere da posse.

Urge promover um debate aprofundado sobre esta matéria, com vista à necessária alteração legislativa – já, aliás, sugerida no Projeto de Lei nº 580/XVI/1ª[9] apresentado pela Iniciativa Liberal – de forma a pôr fim a situações manifestamente injustas, em que o esbulhador usufrua, sem qualquer custo, de um bem alheio enquanto o proprietário suporta todos os prejuízos da sua privação.

[1] https://expresso.pt/economia/economia_imobiliario/2025-02-20-portugal-e-o-pais-da-ocde-onde-e-mais-dificil-comprar-casa-be10a8dc

[2] https://expresso.pt/economia/economia_imobiliario/2025-01-30-crise-na-habitacao-esta-para-durar-1eb9e8c5

[3] https://observador.pt/2024/12/23/especialistas-antecipam-agravamento-da-crise-na-habitacao-em-2025/

[4] https://expresso.pt/sociedade/2025-03-20-mais-de-800-casas-municipais-ocupadas-ilegalmente-f54eda7c

[5] António Santos Abranges Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. 1, 3ª Ed., Almedina, Coimbra, p. 486.

[6] Acórdão do STJ, de 19.10.2016, proferido no processo nº 487/14.4T2STC.E2.S1, disponível em www.dgsi.pt.

[7] José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Volume 2, 4ª Ed., Almedina, Coimbra.

[8] Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 09.05.2024, processo nº 246/24.6T8PRD.P1 e do Tribunal da Relação de Évora de 30.01.2024, Processo nº 293/24.8T8CBA.E1, e do Tribunal da Relação de Évora, de 19.12.2022, proferido no processo nº 427/22.78SSB-A.E1, disponíveis em www.dgsi.pt.

[9] https://www.parlamento.pt/ActividadeParlamentar/Paginas/DetalheIniciativa.aspx?BID=314906